Um artigo de fevereiro de 2010, porém atual.
Cândido Grzybowski*
A construção da Usina Hidroelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, na Amazônia, tem a ver com a produção e segurança energética do país, sem dúvida. Mas está longe de ser algo restrito à avaliação de engenheiros(as), economistas e gestores de política energética. Parece um símbolo emblemático dos rumos do país. Afinal, que país estamos construindo?
Belo Monte, assim como Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, são hidroelétricas pensadas como parte do projeto “Brasil Grande” da ditadura militar, nos anos 1970. Mais de 30 anos depois, tais projetos são retomados e, uma vez mais, apresentados como inevitáveis para o desenvolvimento e a segurança energética. Contribui para isso a tomada de consciência do enorme risco de mudanças climáticas por causa da queima de combustíveis fósseis. As hidroelétricas significam energia limpa.
Mesmo com significativas mudanças técnicas – de grandes reservatórios, tipo Itaipu, no rio Paraná, para reservatórios menores com turbinas turbo – e substantiva melhora na avaliação do impacto ambiental, continuamos com a mesma visão sobre energia e segurança energética dos tempos da ditadura.
Será que não existe outra maneira de ver e resolver os essenciais problemas de energia? Não acredito no autoritarismo contido na visão tecnocrática que nos impõe esse tipo de solução. Vejo, pelo contrário, a dificuldade do modelo desenvolvimentista que torna regiões inteiras do país, como a Amazônia e o Centro Oeste, meras zonas de reserva de recursos naturais. Há um desenvolvimento, na essência, concentrador de riquezas e destruidor da base natural.
A controvérsia de Belo Monte ainda não acabou, apesar da licença ambiental concedida há pouco pelo Ibama. Os “birrentos” continuam resistindo: povos indígenas originários, comunidades de pescadores, extrativistas e pequenos agricultores posseiros, todos os que têm muito a perder e nada a ganhar, nem mesmo energia elétrica, em nome do desenvolvimento do Brasil. Que Brasil? Para quem? Aos que resistem no local, aliam-se ativistas de direitos humanos e ambientalistas de variadas correntes. E há também os(as) teimosos(as) procuradores(as), atacados(as) pela própria Advocacia-Geral da União (AGU) por cumprirem o seu papel.
Não adianta alegar que todos os ritos foram cumpridos e que as 40 exigências do Ibama deverão ser atendidas para as obras não serem embargadas. O fato é que a decisão de usar o rio Xingu como recurso energético atende aos interesses de grandes empreiteiras e investidores, grandes consumidores industriais de energia elétrica (alumínio e outros). Tais decisões já estavam tomadas, faltava apenas contornar as condicionalidades ambientais, entre outras. O rito não foi para mudar uma decisão, mas para legitimá-la.
Por que mais essa agressão aos povos da floresta e à Amazônia? Será que não somos capazes de nos libertar de obsoletas ideias de desenvolvimento que nos levam a praticar uma espécie de colonialismo interno, que conquista zonas chamadas livres e de expansão, explora recursos naturais, destrói e concentra riquezas?
A justificativa de matriz elétrica limpa não melhora a imagem de um desenvolvimento contrário ao futuro dos povos que compõem a nossa diversidade brasileira. Outras, muitas outras opções existem. Uma delas é o uso mais eficiente da energia que já temos. Além disso, podemos e devemos transformar em eletricidade o sol e os ventos com os quais a natureza nos brinda. Por que insistir na grande usina, nos custosos investimentos de produção e transmissão de energia para locais distantes, e não no pequeno e localizado, onde existe a necessidade de energia elétrica e a possibilidade de satisfazê-la?
O debate sobre a Usina Hidroelétrica de Belo Monte é, antes de tudo, um debate sobre o Brasil que queremos – sustentável, solidário e democrático –, no qual poder e economia se relocalizam, se aproximam da cidadania e por ela são controlados.
*Sociólogo, diretor do Ibase
Publicado em 12/02/2010.
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