Na segunda metade do século 18, os maiores cientistas da Inglaterra se juntaram na Sociedade Lunar, fazendo descobertas que deram o pontapé inicial na Revolução Industrial
por Reinaldo José Lopes
Todos os meses, nos domingos de lua cheia, um grupo de amigos costumava se reunir em Birmingham, na Inglaterra, para beber quantidades colossais de vinho e bater papo. Depois do jantar – que acontecia às 2h da tarde, como era comum no século 18 –, os colegas mandavam limpar a mesa e mostravam por que os animados encontros do grupo, conhecido como a Sociedade Lunar, entraram para a história. Entre uma piada e outra, eles manejavam microscópios e aparelhos elétricos, debatiam como construir uma carruagem movida a vapor ou erguer um balão pelos ares. E, como dinheiro nunca fez mal a ninguém, pensavam em enriquecer e compensar o esforço de suas pesquisas. Assim, ajudaram a criar a chamada Revolução Industrial e o mundo no qual todos nós vivemos hoje.
A lista dos “lunáticos” de Birmingham parece uma reunião dos “10 mais” da ciência no século 18. Temos o engenheiro James Watt, que aperfeiçoou as máquinas a vapor; Joseph Priestley, químico descobridor do oxigênio; o médico Erasmus Darwin, avô de Charles e, como o neto, autor de uma revolucionária teoria sobre a evolução dos seres vivos. O lado empresarial era representado por Matthew Boulton e Josiah Wedgwood, dois protótipos de industrial sempre prontos a usar os experimentos dos amigos para criar produtos inovadores. Havia ainda Richard Lovell Edgeworth e Thomas Day, jovens idealistas que queriam usar o avanço da ciência para melhorar a sociedade.
Por um lado, a Sociedade Lunar tem uma cara contemporânea, afinal tinha um faro dos mais apurados para transformar seus achados em lucro, coisa que ainda é um problema para muito cientista por aí. Por outro, o grupo é fruto de uma época em que a ciência (aliás, filosofia natural, já que a palavra “cientista” ainda não existia) era quase uma arte, praticada por amadores talentosos que iam da zoologia para a mecânica sem a menor dificuldade.
Esse bando de cientistas-empreendedores só podia ter se formado mesmo na Inglaterra do século 18, um país que parecia estar voltado para o futuro. Fazia tempo, por exemplo, que o lugar tinha deixado de ser uma monarquia absoluta e caminhava para o parlamentarismo. Brigando com a França pelo controle da Índia e da América do Norte, os ingleses levavam a guerra e o comércio de Sua Majestade aos recantos mais obscuros do planeta. Teóricos como Adam Smith, o pai do liberalismo econômico, falavam em abrir fronteiras e diminuir tarifas como o melhor meio de garantir prosperidade para todos.
O ambiente de grandes avanços e confiança no futuro se refletia também na ciência. O sucesso de Isaac Newton e de sua teoria sobre a gravidade fez da filosofia natural um assunto popular. Todo cavalheiro que se prezasse devia mostrar um certo interesse em relação às novas descobertas. Faziam muito sucesso pequenos shows científicos, como dissecações públicas ou demonstrações dos poderes da eletricidade.
Nesse clima, as Midlands Ocidentais, região da Inglaterra onde ficava Birmingham e lar dos principais membros da Sociedade Lunar, começaram a prosperar como nunca. Darwin, Boulton e Wedgwood descendiam de pequenos proprietários de terra da área, plebeus, mas com algumas posses. Graças às novas necessidades do mercado interno e internacional, Birmingham estava virando um grande centro manufatureiro, produzindo principalmente artigos de metal e cerâmica para os ricos e para a classe média européia. Foi para aproveitar essas oportunidades que Boulton tornou-se “fabricante de brinquedos” (na verdade, o termo se aplicava também à manufatura de uma série de pequenos objetos em metal, como botões e fivelas de cintos e calçados), enquanto Wedgwood seguiu a tradição da família e aprendeu a profissão de oleiro.
Assim como a dupla, boa parte dos empreendedores das Midlands pertencia a seitas protestantes como os quakers, os batistas e os metodistas, que desafiavam a religião oficial da Inglaterra (o anglicanismo) e, por isso mesmo, eram impedidos de ocupar os principais cargos públicos. Conhecidos como não-conformistas ou dissidentes, eles transformaram a discriminação em vantagem ao se tornarem grandes homens de negócios e se dedicarem aos problemas mais avançados da ciência e da filosofia, livres das restrições que o anglicanismo tradicional muitas vezes impunha.
Mais ao norte, as cidades escocesas passavam por um boom parecido com o de Birmingham graças ao comércio fluvial e marítimo, e foi graças a esse processo que as primeiras conexões entre os membros da Sociedade Lunar começaram a ser forjadas. O jovem Erasmus Darwin, filho de um advogado e dono de terras, tinha sido mandado para a Universidade de Cambridge em 1750, para se formar em medicina, mas logo descobriu que a instituição era um bocado antiquada. O melhor jeito de conseguir boa formação era ir a Edimburgo, capital da Escócia, cuja universidade era bem mais aberta às novas teorias – e aceitava alunos e professores não-conformistas.
Erasmus era uma figura: alto, com o rosto marcado por cicatrizes de varíola, falava pelos cotovelos (apesar de gaguejar freneticamente) e já demonstrava certa tendência à obesidade – na idade madura, as mesas onde ele sentava precisavam ter um buraco em semicírculo para acomodar sua avantajada barriga. Como qualquer universitário, vivia atrás de um rabo de saia e enchia a cara nas tavernas de Edimburgo. Mas também se mostrava um aluno brilhante, capaz de absorver modernas teorias sobre o funcionamento do organismo humano e de misturar a paixão pelos experimentos com talento para a poesia.
Depois de formado, Darwin se fixou na pequena e aristocrática cidade de Lichfield, a uns 20 quilômetros de Birmingham. Atendia pacientes por toda a região, sacolejando pelas péssimas estradas em carruagens que ele mesmo tentava aperfeiçoar. Graças a essas jornadas, tornou-se amigo de Boulton, ao cuidar de membros da família da mulher dele, os Robinson, e logo conheceu também Wedgwood. O trio trocava cartas sem parar, discutindo experimentos de todo tipo, principalmente envolvendo química, eletricidade e geração de energia.
Além do interesse científico, Boulton e Wedgwood eram pioneiros na organização de seus negócios. O primeiro resolveu concentrar todas as suas operações na Manufatura Soho, criando uma espécie de bisavó das linhas de montagem (antes, cada etapa do processo de fabricação era feita numa oficina diferente). Já Wedgwood tinha faro de marqueteiro: seduziu a família real com seus vasos de cerâmica fina e conseguiu o direito de ostentar o título de “Oleiro da Rainha” – propaganda melhor, impossível. Para criar produtos melhores e mais ao gosto do público, os dois aproveitavam as descobertas da química e da geologia – foi graças a elas que a caríssima porcelana chinesa conseguiu ser reproduzida por fabricantes europeus.
Nada mais distante de uma ciência exata do que a química praticada pelos “lunáticos” e seus contemporâneos. “Para eles, o que mais importava não era o conhecimento teórico, mas o experimental”, afirma Ursula Klein, do Instituto Max Planck de História da Ciência, na Alemanha. “O equipamento deles não era muito diferente do usado pelos boticários, pelos ourives ou nas destilarias da época.” Para se ter uma idéia, conta-se que o alemão Andreas Sigismund Marggraf conseguiu purificar pela primeira vez o ácido fórmico destilando 24 onças (cerca de 680 gramas) de formigas até verificar a formação de cristais.
Foram esses experimentos que ajudaram a fortalecer as conexões do grupo das Midlands com colegas mais ao norte, como James Watt, um especialista em instrumentos de precisão e químico entusiasta, e Joseph Priestley. O segundo era ao mesmo tempo um mestre do laboratório e um visionário político e religioso. Pastor não-conformista, Priestley dizia que Jesus havia sido apenas um homem de grandes qualidades morais, e defendia que as descobertas da ciência deviam ser acessíveis a todos, para que a sociedade pudesse progredir e as autoridades injustas fossem substituídas por um governo do povo.
Nos anos 1770, Priestley estava às voltas com os gases que escapavam das rochas e minerais, uma das grandes novidades da época. As rochas calcárias, por exemplo, liberavam dióxido de carbono (CO2), e o pastor criou a primeira água mineral com gás da história ao misturar a substância ao líquido. Mas a sua descoberta mais importante veio quando ele aqueceu óxido de mercúrio com a ajuda de uma lupa que concentrava os raios do Sol e conseguiu capturar o gás liberado. Nas suas próprias palavras: “Peguei um camundongo e o coloquei num recipiente de vidro, contendo duas onças do ar das calcinações de mercúrio. Se fosse ar comum, ele teria vivido um quarto de hora. Neste ar, contudo, viveu meia hora”. Priestley tinha descoberto o oxigênio. A publicação de seus resultados fez com que ficasse conhecido pelos membros da Sociedade Lunar. Ele se juntou ao grupo quando se mudou para os arredores de Birmingham em 1780.
Nesse meio-tempo, Watt já se tornara um membro ao virar sócio de Boulton. Fazia uma década que o engenheiro escocês, sujeito talentoso, mas pessimista e completamente hipocondríaco, tentava aperfeiçoar as máquinas a vapor rudimentares da época. Por ora, suas tentativas tinham esbarrado em uma série de problemas técnicos e, para piorar, seu principal financiador, John Roebuck, foi à bancarrota em 1774. Contudo, Watt já tinha o mais importante – uma patente que lhe garantia o pagamento de royalties por qualquer motor que utilizasse os princípios que inventara. Boulton, que já o conhecia, percebeu o potencial daquilo e convenceu o desesperado Watt a se mudar para Birmingham.
Demorou um pouco, mas a parceria fez sucesso. O aparelho aperfeiçoado por Watt consumia menos carvão e era quatro vezes mais potente que o modelo mais comum da época. Como as locomotivas ainda iam levar quase meio século para ser inventadas, a principal utilidade do engenho era drenar água das minas de carvão e cobre, que freqüentemente eram inundadas e ficavam inacessíveis. Watt e Boulton fizeram fortuna vendendo suas engenhocas para a indústria mineira. Sempre marqueteiro, Boulton declarou certa vez a um visitante de sua manufatura: “Eu vendo aqui, meu senhor, o que o mundo inteiro deseja conseguir: poder”.
Tudo parecia caminhar às mil maravilhas. As reuniões, que já aconteciam havia alguns anos, foram semi-oficializadas a partir de 1775, embora fosse raro que todos os membros participassem. “Nos encontros, eles funcionavam como um pequeno grupo de pesquisa de alto nível”, diz a escritora britânica Jenny Uglow, autora de The Lunar Men, (“Os Lunáticos”, inédito em português) uma biografia coletiva da Sociedade Lunar. Além de Priestley, o grupo tinha outros dois teóricos políticos e sociais, Richard Edgeworth e Thomas Day. A dupla se inspirava nas idéias do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, para quem os seres humanos eram naturalmente bons – a sociedade é que os corrompia. Day chegou a colocar esse ideal em prática escrevendo o primeiro livro infantil da Inglaterra e tentando transformar uma órfã na esposa ideal aplicando a educação à la Rousseau.
Daí a apoiar idéias democráticas consideradas radicais era um pulo. Por isso, muitos dos membros festejaram a Revolução Francesa, em 1789, que primeiro restringiu os poderes do rei Luís XVI e depois acabou decapitando o soberano. É claro que o governo inglês não via com bons olhos esse radicalismo, em especial o de Priestley, um dos maiores defensores do governo francês. Por baixo dos panos, as autoridades de Birmingham – em especial o clero anglicano – estimularam ataques de arruaceiros contra a casa do pastor “subversivo” e de outros membros da sociedade, como William Withering, em 1791.
Priestley teve de fugir da cidade e acabou emigrando para os Estados Unidos, independentes desde 1776. Depois de sua partida, os encontros nunca mais foram os mesmos, com os membros cada vez mais preocupados com a situação política (e tentando salvar os próprios pescoços). Na virada do século, os encontros praticamente tinham parado, e a nova geração olhava com desconfiança para os experimentos malucos e idéias radicais dos “lunáticos”. Não que isso importasse muito: nas fábricas, máquinas e objetos do século 19, era clara a marca deixada pela Sociedade Lunar.
Vovô Darwin e a origem das espécies
Avô de Charles tinha suas próprias idéias sobre a evolução
Erasmus Darwin pode não ter descoberto um mecanismo tão claro quanto a seleção natural, como seu neto Charles faria décadas mais tarde, mas o médico fez uma série de observações clarividentes sobre a evolução dos seres vivos. Inspirado por Carl von Linné, o botânico sueco que criou a nomenclatura usada ainda hoje para designar animais e plantas (como o nome duplo Homo sapiens atribuído ao homem), Erasmus se tornou um grande observador dos vegetais. Em seu livro The Loves of Plants (“Os Amores das Plantas”), ele reuniu seus achados numa mistura curiosa de versos shakespearianos e notas em prosa. Nessa obra e nas seguintes, como The Temple of Nature (“O Templo da Natureza”), Darwin destaca a importância do sexo para as formas e o comportamento dos seres vivos, um ponto que seria confirmado pelos futuros biólogos evolutivos. Seus escritos estão cheios de metáforas libidinosas, em que até as plantas vivem encontros amorosos, adultérios e poligamia. E ele cogita que todos os animais descendem de um único ancestral, um “filamento vivo” – outro chute bem-dado que os paleontólogos e geneticistas iriam provar mais tarde. Assim como seu descendente, Erasmus despertou a ira de alguns religiosos com suas idéias. Brincando com fogo, ele pegou o brasão da família Darwin (formado por três conchas) e adicionou a ele o lema em latim E conchis omnia (“tudo deriva das conchas”), como exemplo de sua idéia do ancestral comum. Thomas Seward, o bispo de Lichfield, ficou fulo da vida com a idéia e compôs um ou dois versos satíricos desancando Darwin. Erasmus acabou desistindo do gesto e retirou a frase do escudo da família.
Receita de esposa
Thomas Day acreditava que poderia criar a mulher ideal
O prêmio de radicalismo filosófico certamente é de um dos mais jovens membros da Sociedade Lunar, Thomas Day. Inspirado pelas idéias de Rousseau e decidido a criar para si mesmo a esposa ideal – “com gosto pela literatura e pela ciência” e ao mesmo tempo “simples como uma montanhesa e destemida e intrépida como as mulheres espartanas” –, Day adotou duas garotas, uma morena de 11 anos e uma loura de 12, e passou a criá-las. A que se saísse melhor nos quesitos acima viraria sua companheira. Desnecessário dizer que a idéia foi um fracasso. Decidido a começar do zero na sua tarefa educativa, Day começou rebatizando as ninfetas, dando à lourinha o nome de Lucretia, e à morena, o de Sabrina. Levou a dupla para uma viagem filosófica pela França, mas elas acabaram ficando doentes e, ainda por cima, a brigar pela atenção do filósofo como duas autênticas aborrescentes. Na volta à Inglaterra, Day logo desistiu de Lucretia, que recebeu um dote e se casou com um tecelão. A outra, Sabrina, tinha se tornado uma beldade, segundo os relatos da época, e causou sensação entre os intelectuais das Midlands. Mas a moça não passou nos testes “espartanos” do filósofo. Um deles incluía não gritar quando ele derrubava cera quente nas mãos dela. Em outro, Day fingiu confessar à Sabrina que sua vida estava em grave perigo e que ela não podia contar o fato a ninguém (no dia seguinte, todos os amigos e criados do filósofo já estavam sabendo). No fim, ela acabou se casando com John Bicknell, amigo de seu ex-tutor. Essa não foi a última das excentricidades amorosas de Day. Ao apaixonar-se pela refinada Elizabeth Sneyd, que não queria nem ouvir falar das pataquadas espartanas dele, o filósofo decidiu passar um ano na França aprendendo a última moda da época sobre dança, cortesia e roupas. Não adiantou muito: Elizabeth decidiu que preferia o Day antigo, embora ainda não quisesse se casar com ele. Mais tarde, o filósofo finalmente achou uma companheira, Esther Milnes, que topou seguir seus ideais linha-dura.
Saiba mais
Livro
The Lunar Men, Jenny Uglow, Farrar, Straus and Giroux, 2004 - Uma enciclopédia sobre os “lunáticos” e sua época, acompanhando a trajetória de dezenas de personagens e sua relação com os eventos mais importantes do século 18.
Site
http://www.erasmusdarwin.org/ - Para os interessados em conhecer como os “lunáticos” viviam, vale a pena visitar virtualmente as casas de Erasmus Darwin e Matthew Boulton, ainda preservadas em Lichfield e Birmingham
Revista Aventuras na Historia
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