Aprender a ler transforma realidades, insere o indivíduo na sociedade, muda a forma como ele se relaciona com o ambiente. Isso, os pedagogos já sabiam. Mas a leitura é responsável por alterações muito mais profundas: literalmente, ela modifica o cérebro. Uma pesquisa com participação brasileira, incluindo o Distrito Federal, publicada recentemente na edição on-line da revista especializada Science mediu o impacto da alfabetização na mente. Os cientistas constataram que ele é bem maior do que o imaginado. As áreas cerebrais ativadas pelas letras não se restringem à região relacionada à linguagem codificada, mas envolve diversas outras, como os setores da fala e da visão.
Como a escrita é uma atividade recente, comparando-se à idade do homem, o cérebro não tem uma região inata relacionada à leitura. “Temos que fazer uma colagem, utilizar sistemas que já existem”, declarou à agência de notícias AFP Laurent Cohen, do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França (Inserm) e um dos coordenadores do estudo. “Ainda não houve tempo para o órgão formar essa estrutura. Então, o cérebro recicla estruturas antigas para atender às novas demandas culturais”, detalhou Lucia Braga, diretora de pesquisas do Centro Internacional de Neurociências da Rede Sarah, onde foi realizada a parte brasileira do estudo.
Quarenta e um voluntários do entorno do Distrito Federal, incluindo alfabetizados na infância, analfabetos e alfabetizados na idade adulta com diferentes níveis de escolarização, se submeteram a ressonâncias magnéticas funcionais, enquanto tinham seus cérebros mapeados. Durante o exame, que permite visualizar a ativação da atividade cerebral, os participantes recebiam estímulos diversos, como frases e palavras escritas e faladas, imagens de objetos e rostos, e caracteres sem significado semântico. Os cientistas, então, puderam observar a resposta do cérebro de cada grupo de voluntários.
“O resultado é que aprender a ler transforma violentamente as redes neuronais da visão e da linguagem”, diz Lucia. “Quando as pessoas foram expostas às frases escritas, houve um aumento da ativação cerebral na área das palavras.” Entre os analfabetos, não foi constatada a ativação. E, quanto maior a escolaridade, maior a atividade dos neurônios.
“O principal achado da pesquisa, o que nos surpreendeu, foi que os efeitos da leitura no córtex são visíveis tanto nas pessoas alfabetizadas na infância quanto na idade adulta. Então, mesmo quem passou anos da vida sem oportunidade de aprender a ler, quando consegue chegar à escola, tem suas redes cerebrais acionadas exatamente da forma verificada em pessoas alfabetizadas na infância”, explica a neuropesquisadora. “O que vai diferenciar é o nível de escolarização. Quem estudou mais tem maior ativação, mas isso depende menos do fato de a pessoa ter aprendido a ler na infância.”
De acordo com a especialista, o resultado significa que os circuitos da leitura permanecem plásticos durante a vida toda. “Esses resultados demonstram o impacto maciço da educação sobre o cérebro humano. É importante ressaltar que a maioria esmagadora das pesquisas com ressonância magnética funcional cerebral é realizada com cérebro educado, e que a organização cerebral, na ausência de educação, constitui um imenso território amplamente inexplorado”, alerta.
Políticas públicas
Para a médica, que também é presidente e diretora executiva da Rede Sarah, esse resultado tem implicações evidentes para o Brasil. “Se considerarmos que o letramento melhora as respostas do cérebro e redefine a organização cerebral, e que o país tem 14 milhões de analfabetos, é importante pensar como poderíamos mudar essa realidade”, afirma. De acordo com Lucia, conexões mais ágeis levam a uma capacidade maior de funcionamento cerebral. “Essas pessoas podem usar mais seu cérebro e isso terá um grande impacto na vida cotidiana. O estudo poderia ajudar na construção de políticas públicas para alfabetização de adultos”, acredita.
Ainda não se sabe se o fato de o cérebro reciclar estruturas antigas para atender às novas demandas pode ter algum impacto negativo para a mente. “O córtex visual reorganiza-se por meio da competição entre a atividade nova de leitura e as atividades mais antigas de reconhecimento de faces e de objetos. Durante a alfabetização, a resposta às faces diminui levemente à medida que a competência de leitura aumenta na área visual do hemisfério esquerdo, utilizada para reconhecer faces e objetos nos analfabetos”, explica a pesquisadora. “Com isso, observamos que a ativação às faces desloca-se parcialmente para o hemisfério direito. Não se sabe, hoje, se essa competição tem consequências funcionais para o reconhecimento ou a memória de faces.”
5 mil anos
Enquanto o homem moderno tem cerca de 50 mil anos, a escrita começou a se desenvolver há apenas 5 mil anos, em diversas regiões independentes, como a China e a Mesopotâmia (hoje, o Iraque). Os pesquisadores acreditam que as formas mais antigas da escrita são a cuneiforme e os hieróglifos.
Fonte: Jornal Correio Braziliense
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