domingo, 10 de outubro de 2010
Perfil – Benedito Nunes
Ao 80 anos, o professor paraense Benedito Nunes fala das relações entre poesia, filosofia e crítica literária
Eduardo Fonseca
Benedito Nunes é um pensador raro. Nascido em 21 de novembro de 1929, o paraense acumula em sua biografia declarações entusiasmadas sobre sua produção, celebrada no meio acadêmico como uma sensível conjugação de crítica literária com filosofia. Antonio Candido, por exemplo, declarou que Nunes é um intelectual admirável sob vários aspectos: pela grandeza e originalidade da inteligência, pela discrição de seu caráter, pelo senso do dever e pela retidão moral, características que nem sempre os grandes pensadores possuem em conjunto. Clarice Lispector dizia que o ensaísmo de Nunes era “algo diferente, que não sei o que é”. Essa mesma ambiguidade, aliás, seria desenvolvida pelo filósofo, anos depois, para qualificar seu próprio estilo: “Clarice percebia que meu interesse intelectual não nasce nem acaba no campo da crítica literária. É ampliado à compreensão das obras de arte e extensivo à interpretação da cultura e à explicação da natureza”.
A trajetória de Nunes inclui passagens pela Universidade de Berkeley (EUA) e pela Sorbonne (França). Nesta última, frequentou os cursos de Maurice Merleau-Ponty e Paul Ricoeur, pensadores fundamentais para a filosofia no século 20. Nunes não deixou de circular por grandes cidades. Mas é um desses intelectuais que, nas palavras de Candido, “resistem ao magnetismo das metrópoles”, alguém que “não renuncia à sua província”. Belém foi mesmo a plataforma de onde projetou boa parte de suas ideias. “Houve várias tentativas de sair que não deram certo. Depois de um tempo, comecei a reconhecer que era melhor ter o pé fixo aqui”, diz, com a humildade que lhe é característica. Foi um dos fundadores do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Pará e, em 1976, trouxe o filósofo francês Michel Foucault para uma série de palestras em Belém. O autor de As Palavras e as Coisas aproveitou a estadia e o convite de Nunes para conhecer a Ilha de Mosqueiro, um distrito a 70 quilômetros da capital paraense, cujas praias de areia clara e água doce com ondas que chegam a 1 metro e meio de altura o surpreenderam. “Foucault nunca tinha visto praia de rio com influência de maré e onda”, conta com satisfação.
Livros como O Dorso do Tigre, O Tempo na Narrativa, Passagem para o Poético mostram de que maneira Nunes procurou dosar, com justa medida, o discurso filosófico e a crítica literária. Antonio Candido indicou com precisão a riqueza desse movimento pendular: “O filósofo traz para a literatura o nível de reflexão e de abstração que os críticos geralmente não trazem; ele leva para a filosofia um sentimento estético e um senso de beleza que os pensadores nem sempre têm”. Nunes, um dos responsáveis por introduzir o pensamento de Martin Heidegger no Brasil, viu muito cedo nas obras do filósofo alemão um feliz encontro entre a filosofia e a poesia. “Existe muito de poético no Ser e Tempo. E é a esse tipo de produção que o crítico deve estar atento”, ou seja, a textos em que a poética é utilizada para atingir uma expressão ainda virgem, quando nem a filosofia nem a ciência dão conta ainda de verbalizar o momento. Pois é “no instante em que surge algo novo, que a linguagem recorre ao poético para expressar essa coisa nova. Assim, forma-se um ciclo que faz com que só a poesia tenha capacidade de vislumbrar algo além daquilo que é empírico e histórico. Daquilo que já está dado”. A poesia seria, então, a linguagem do gênesis, de algo que ainda está por ser consolidado. Se o crítico fosse um garimpeiro, ela seria a sua mina de ouro.
Momento crítico
O grande problema, para o professor, é que essa expressão poética não se desenvolveu como deveria, predominando hoje uma linguagem mais rasa e repetitiva no discurso da crítica e da filosofia. O “surto poético”, para Nunes, deixou de ser valorizado. São vários os motivos para isso, mas o principal diz respeito à “aglutinação da cultura” que “sedimenta a experiência”, fazendo com que não haja mais uma visão primogênita da realidade. Sem a visão originária das coisas, “diversas camadas de sentido incorporaram variadas tradições em uma só convergência”. Como resultado, “dentro desse ponto de vista, a situação cultural hoje se encontra num momento muito difícil”.
A figura do crítico cultural também passou a ser secundária. Os críticos já não escrevem tanto para os jornais e, com isso, perdem sua autoridade fora do cerco universitário. “Sem espaço para a crítica, criou-se uma espécie de não literatura dentro da literatura. Há muito lixo. E quem vai selecionar isso? Quem se interessa em editar isso? A voz do crítico perdeu ressonância. O papel dele era refletir sobre o texto e levá-lo ao conhecimento dos outros, gerando discussão. Agora, não há mais ninguém para ordenar esse diálogo.”
Existe, porém, uma convergência que o filósofo paraense vê como uma espécie de marca distintiva de grande parte da produção literária contemporânea, principalmente a feita em prosa: o conflito. E, uma vez que “o romance espelha as vicissitudes do seu tempo”, a incapacidade deste em transmitir uma experiência comum e primogênita é o resultado mais visível desse processo. Em um mundo em que a cultura está cada vez mais “aglutinada”, os conflitos de qualquer natureza (sociológicos, psicológicos etc.) que derivam daí estabelecem a base da literatura produzida hoje, seja no Pará, seja no Rio Grande do Sul, independentemente do cenário ou da trama. “Vivemos numa sociedade fragmentada, em que não temos a quem nos reportar. O que nos resta é o conflito que, por sua vez, se diversifica conforme as circunstâncias. A princípio, pode parecer uma questão contingencial, mas, no fundo, é existencial também”, pondera Nunes.
Lembranças remotas
Não é de estranhar que hoje esse senhor calmo e solícito valorize tanto seu microcosmo. Seguro numa espécie de oásis no meio da selva urbana de Belém, que chama carinhosamente de sua “concha existencial”, Nunes resguarda do mundo conflitivo as coisas que mais ama: seus livros, sua mulher, seu gato, seu cachorro, suas samambaias, seu conforto.
Sua concha lhe permite idealizar aquilo que é tido por muitos como um martírio: a velhice. “Ainda tenho os benefícios da idade ideal que eu mesmo forjo na minha cabeça”, diz, de maneira espirituosa. Tática que o ajuda a lidar com a vida cotidiana, fazendo com que ele possa ignorar, “enquanto há saúde”, a carga do tempo. “É interessante, mas o tempo não me angustia, afinal, vivemos no dia a dia e é esse dia a dia que absorve a gente.”
Embora tenha criado o atual departamento da UFPA, Nunes não se formou em filosofia. Graduou-se em direito no Pará, mas a vida jurídica nunca passou por sua cabeça. Dessa época, sua maior conquista foi mesmo Maria Sylvia, esposa e companheira que está a seu lado desde 1953.
Da mesma forma que dispensou a vida nos tribunais, Nunes dispensa também as honras de qualquer tipo de academia, pois, desde os 14 anos de idade, já faz parte de uma. E, “uma vez imortal, não se pode sê-lo duas vezes”, diz. Sobre essa instituição da qual é sócio-fundador, ele fala com gosto. Aos 80 anos, parece que a lembrança ganha autoridade. Ele, então, nos pede um instante, vai até outro recinto e retorna trazendo nas mãos um texto com as memórias desse tempo, no longínquo ano de 1943, quando ele e mais um grupo de amigos tiveram a oportunidade de ter em mãos o anuário da Academia Brasileira de Letras: “Nosso padrão associativo ideal”,
conta, rindo. Fascinados com tanta soberba, os garotos resolveram criar sua própria agremiação. “Era muito engraçado. Chamava-se ‘Academia dos Novos’. A sede era a casa da minha tia, uma casa bonita, com móveis antigos. Cada membro sentava-se na sua cadeira austríaca. Éramos apóstolos do parnasianismo e contra a desagregação modernista!”.
Hoje, além de escrever algumas memórias pessoais, como essa citada acima, ele se dedica a fazer um apanhado de sua produção, lendo e modificando, quando necessário, alguns textos antigos. Também leciona num curso livre e gratuito de filosofia no Centro de Cultura e Formação Cristã, em Ananindeua, cidade da região metropolitana de Belém. Para aqueles que moram na região, é uma oportunidade única de ver e ouvir, fora de sua concha, um dos maiores pensadores brasileiros da atualidade.
ENTREVISTA na Revista Cult
Quarenta anos depois, Benedito Nunes responde novamente a duas perguntas feitas por Clarice Lispector
Neste mês, chega às livrarias uma belíssima compilação de ensaios de Benedito Nunes batizada de A Clave do Poético. Separados por temas (“Pensando Literatura”, “Teoria Literária”, “Crítica de Autores”, entre outros), o material destaca textos produzidos em épocas distintas, que fornecem um recorte abrangente do pensamento do filósofo e crítico paraense. Entre os ensaios, há uma entrevista concedida a Clarice Lispector no fim da década de 1960. Aproveitamos a ocasião para forjar um reencontro da escritora com o autor de O Mundo de Clarice Lispector, primeiro livro dedicado inteiramente à obra dela, lançado em 1966. Repetimos, 40 anos depois, as duas primeiras perguntas da entrevista:
CULT – O que está acontecendo com a literatura brasileira, hoje?
Benedito Nunes – Acredito que até hoje a literatura brasileira ainda não colheu os frutos da vida universitária. Encontra-se segregada dos polos produtivos. E isso é lamentável. Se antes a própria cidade gerava um ambiente em que se fomentavam polêmicas sobre obras que estavam sendo feitas, esse ambiente não se repetiu e não tem mais como se repetir no mesmo espaço. Era um ambiente em que a crítica tinha um papel fundamental. Mas, banida da vida na cidade, a crítica deveria ter se voltado para as universidades. Para mim, a universidade deve ocupar o espaço que um dia foi do centro da cidade. Hoje, o jeito como as cidades são constituídas freia muito o desenvolvimento humano e social. Por outro lado, há também um conformismo muito grande na universidade. Ela estabilizou-se, passando a alimentar certo conformismo oficial em que cada um tem seu lugar garantido e se isola em seu ninho. E mesmo esse gigantismo das universidades, onde tudo funciona em massa, contribui para essa situação. É muito difícil conduzir a massa. Encontramos, então, uma multidão comprimida em sala de aula e pouco participativa. Some-se a isso o meio de leitura, que mudou. Hoje, ocorre uma diversificação real da leitura, cada um está lendo algo diferente, falta foco, falta discussão aprofundada. Devido a essa lacuna, há o predomínio de textos mais diretos, de caráter informativo, voltados para as multidões, de resenhas em vez de críticas.
CULT – O que tem a ver o modernismo com a cultura brasileira?
Benedito – Do ponto de vista atual, houve um confinamento muito grande do modernismo. Quando falamos em modernismo, nos referimos normalmente ao modernismo de São Paulo. Mas houve grandes análogos em outros estados, e isso ainda não foi explorado. A universidade poderia convergir suas atividades para esse ponto, de apurar a contribuição do modernismo em outros estados, pois não se fez o estudo das outras províncias. Tenho a impressão de que carecemos desse tipo de informação. Por outro lado, o modernismo não existe mais na atual geração, só nos livros de história. Na produção cultural, o movimento não existe. O modernismo não fez uma tradição forte que tenha se firmado. Hoje, ele se resume a um fato histórico, não a uma tradição, pois não se integrou à experiência das atuais gerações do país. Seu grande valor foi deixar essa mensagem de revolta literária, de revide a uma situação determinada.
Fonte: Revista Cult
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Um comentário:
>> Parabens meu Ir.'. pela iniciativa!!!!!
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