sábado, 23 de outubro de 2010

A biblioteca de Alexandria e a alquimia da palavra escrita

Em visita ao Distrito de Icoaraci, à convite do amigo e produtor Roberto Ribeiro, na divulgação do dia da Animação, que ocorreu no dia 28 de Outubro 2010, num dos poucos espaços institucionais em Belém de estudo e pesquisa - a sala de leitura da Biblioteca Avertano Rocha. O poster compartilha uma bela matéria assinada pela professora da USP, Heloisa Prieto.

Observamos a importância da revitalização e a potencialização de espaços como estes para a democratização do conhecimento.



A biblioteca de Alexandria e a alquimia da palavra escrita

Heloisa Prieto

Quando se atravessa uma paisagem urbana, como a de São Paulo, repleta de cartazes, folhetos, bancas de jornais, camisetas estampadas com frases, poemas pintados nos muros, mensagens em movimento escritas nos pára-choques de caminhões, poucas vezes surge a consciência de que nem sempre a escrita esteve tão presente na vida das pessoas.

No Antigo Egito, por exemplo, a escrita era considerada uma atividade sagrada e a alfabetização envolvia uma longa iniciação aos mistérios e responsabilidades da aquisição de um saber extraordinário. Naquele tempo se acreditava que Thot, era o nome da divindade que ensinara aos seres humanos o uso da escrita, da arquitetura, da medicina e da matemática. Grande defensor da humanidade, Thot era também o patrono da alquimia. Normalmente o termo alquimia sugere a capacidade de transformar chumbo em ouro. Porém, se Thot era o deus da escrita, é possível estabelecer-se uma aproximação e sugerir que aprender a ler e escrever seria uma forma de fazer a alquimia interna, isto é, abrir as portas da mente para o surgimento de paisagens imaginárias, bem como novos portais de conhecimento.

Nesses idos tempos da biblioteca de Alexandria quando se acreditava que os livros aproximavam a consciência dos homens da sabedoria divina, o acervo da instituição continha, além dos tratados sobre magia, biografias de reis e rainhas, livros históricos como a obra História do Egito, de Manéthon, descrevendo os acontecimentos das antigas nações, assim como feitos de heróis e outras figuras ilustres. Esses livros não permaneciam circunscritos às bibliotecas, mas também eram conservados nos arquivos dos templos. Ler, naquele tempo, não era apenas uma atividade para o aprendizado, ou ampliação da cultura pessoal, e sim uma atividade quase sobrenatural, por meio da qual se conquistaria poderes inusitados. A mítica imperatriz Cleópatra, entre vários outros monarcas, era freqüentadora assídua da biblioteca cujos papiros estudava em companhia de César.

Porém, no ano de 391, sob o domínio de Roma, o Imperador Teodósio decretou o fechamento de todos os templos egípcios. Tal medida teve uma conseqüência inesperada: a escrita dos hieróglifos, ainda viva naqueles tempos, tornou-se indecifrável. Na verdade, os mesmos sacerdotes que eram responsáveis pelo culto aos antigos deuses, atuavam como professores de língua escrita, pois os livros eram indispensáveis nas celebrações. Quando os sacerdotes foram expulsos de seus templos, levaram consigo o conhecimento da escrita egípcia. Com o passar do tempo, tanto os textos gravados sobre os monumentos, quanto nos papiros sagrados, tornaram-se incompreensíveis.

No ano de 450, após a destruição da biblioteca de Alexandria, o desaparecimento dos sacerdotes, raros eram os leitores da antiga escrita. Como ainda não havia a imprensa, os livros eram manuscritos. Quando um exemplar era reproduzido, passava a ser conservado na biblioteca de Serapis. Porém, também esse estabelecimento foi condenado à destruição, tendo sido queimado em 391.

Por outro lado, a força da tradição do Antigo Egito e seus mistérios tanto fascinavam os gregos que estes terminaram assimilando e incorporando vários mitos e valores, como a importância dos papiros, suas bibliotecas e dos deuses que teriam transmitido esses conhecimentos aos seres humanos. A biblioteca de Alexandria foi destruída, mas seu mito foi multiplicador e, com o passar dos séculos, bibliotecas espalham-se por todas as cidades e escolas do mundo.

Tantos anos depois, em nossa era de realidades virtuais, a tela do computador parece despertar, em muitos de seus usuários, o desejo de possuir e pesquisar e livros antigos, e os sebos, repletos de livros habitados pelo passado, voltam à moda. Listas de leituras preferidas circulam pelos blogs na Internet, saraus são a moda nos bares das cidades e a literatura, cujo fim tantas vezes já foi anunciado, parece dar provas de sua velha força e mistério.

Ou como diria nossa querida escritora Tatiana Belinky:

“Existe magia mais surpreendente do que abrir um livro e tirar de dentro dele uma história?”


Heloisa Prieto nasceu em São Paulo, em 1954. É doutora pela USP e mestre em semiótica pela PUC. Heloisa é autora de diversas obras de literatura infanto-juvenil e detentora de inúmeros prêmios, entre eles o Jabuti, União Brasileira dos Escritores e Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, além de ter obras selecionadas para compor o acervo básico da biblioteca nacional

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